26 de fevereiro de 2019

Calitzdorp

Para chegarmos a Oudtshoorn atravessamos uma zona montanhosa que separa a costa com bastante vegetação de um deserto. A Route 62 segue através desse deserto, paralela à costa, uns 50 Km para o interior. São longas rectas através do deserto com poucas povoações mas alguns locais famosos como é o caso da “Ronnie’s Sex Shop”.
O Ronnie veio para ali há vinte e um anos e abriu um bar, loja de recordações, a que chamou Ronnie’s Shop. Ninguém lá parava até ele ter a ideia de lhe acrescentar ao nome Sex, passando a chamar-se “Ronnie’s Sex Shop”. De um dia para o outro todos os carros que cruzavam a Route 62 passaram a parar na sua loja e até se passaram a organizar excursões onde a loja é um dos atractivos. O que fez ele para transformar uma pacata loja de estrada numa pretensa “sex shop”? Pendurou meia dúzia de soutiens no tecto do bar. Só que as clientes acharam graça à ideia e muitas começaram a deixar soutiens assinados que ele ía pendurando no tecto. Hoje em dia são muitas centenas que fazem parte da decoração, completada com milhares de cartões de visita e notas que forram as paredes de alto a baixo. Um local único. Parei obviamente para beber uma cerveja e um simpático casal mostrou-me um filme que tinham feito quando me seguiam na estrada.

Sabem qual é a capital do vinho do Porto? Errado. É Calitzdorp, na Route 62, no meio do deserto Sul Africano. Não queria acreditar, quando vi a placa. E ao longe, no fundo do vale, como que a provar que produziam mesmo vinho, uma pequena vinha. Pedi informações a umas pessoas que conheci num restaurante. “Sim, sim, fazem um excelente vinho do Porto”. E deram-me uma explicação que envolvia o calor do deserto a criar mais açúcar no vinho.
Parei para almoçar no também famoso “Diesel and Cream”, especializado em batidos que não cheguei a provar mas devem só ter uma quantidade mínima de Diesel. Na entrada, motos velhas sem motores, peças soltas, metade de um carro americano e painéis antigos de estações de serviço. Giro.
Segui nesse dia de volta a Cape Town onde me voltei a instalar no Hostel junto ao Giovanni’s. Tinha lá deixado o saco onde transporto tenda, saco cama, um colchão de encher e algumas peças suplentes para a moto.
Na manhã seguinte tratei de ir montar um jogo de pneus porque, principalmente o da frente, já estava nas últimas e provavelmente não vou encontrar outro sitio em Africa onde os possa adquirir. Substitui também a bateria que, embora estivesse em bom estado, ainda era a de origem da moto, ou seja, tinha sete anos. Também não quis arriscar que acabasse no meio de África.

Deixei Cape Town ao fim da manhã rumo ao Norte a caminho da Namíbia. Gostei muito de ter cá estado. Se tivesse várias vidas uma delas seria passada aqui. 


24 de fevereiro de 2019

Oudtshoorn

De Mossel Bay segui junto à costa pela chamada Garden Route. Dizem que é das estradas imperdíveis da Africa do Sul mas não me impressionou, fora uma ou outra vista sobre as praias.
Tem ainda o inconveniente de uma quantidade infindável de controles de velocidade, na maioria feitos por policias escondidos atrás de rails. Tive a sorte de parar mesmo antes de um, para ligar a máquina de filmar, quando seguia em excesso de velocidade.
Percorri a costa até à vila de Plattenberg Bay, muito simpática e com uma reentrância de mar fantástica, a criar uma lagoa onde pequenos barcos estão ancorados. Pelas elevações à volta da baía estão espalhadas fantásticas casas de empresários brancos. Porque na Àfrica do Sul do século XXI continuam a ser os brancos os empresários e quem tem os empregos mais especializados, enquanto os africanos ainda são a mão de obra barata que existia no antigo regime.
Nelson Mandela foi muito inteligente quando, ao tomar o poder após as eleições de 1994, não incentivou uma revolta contra os brancos pois ele vira o que se tinha passado na Rodésia e sabia que os brancos são a base da economia neste país, mesmo se representam menos de 10% da população. Se corressem com eles o país descambava e arruinava-se. Assim eles têm mantido um governo de maioria negra mas são os brancos quem toma conta da economia, com as suas empresas. O que este governo tem feito é tentar encontrar formas de proporcionar mais emprego para os negros que, na grande maioria, continuam a viver nas favelas à volta das cidades. Um exemplo foi o que se passou em Cape Town, em que mandaram arrancar todos os parquímetros para que pudessem empregar pessoal para cobrar os estacionamentos, além das multas. 
É principalmente nas zonas mais pobres que a criminalidade tem aumentado porque em centros como os de Cape Town a vida é tranquila, não se sente qualquer tipo de insegurança e quem tem mais dinheiro não tem medo de viver em casas fantásticas sem a segurança que existe por exemplo no Brasil e passear-se tranquilamente de Porsche ou Ferrari sem serem assaltados na rua. 
Nelson Mandela sabia que seriam necessárias duas gerações para que os africanos conseguissem ter um nível de instrução que lhes permitisse começar a ocupar cargos mais bem remunerados e até tornarem-se empresários mas por enquanto isso não é possível. Essa foi uma das razões que o levou a deixar que os brancos continuassem a controlar a economia do país. E foi um modelo seguido pelos que lhe sucederam.
A África do Sul de um modo geral está tranquila e economicamente estável, mesmo se o nível de criminalidade é muito elevado nas zonas mais degradadas. Mas está mais calma e segura de quando cá estive há vinte anos, embora as notícias nos façam crer o contrário.
Depois de visitar Plattenberg Bay voltei uns quilómetros para trás e rumei a Norte, a caminho da cidade de Oudtshoorn, que marca o início da Route 62, uma especie de Route 66 americana, ao estilo Sul Africano. Esta é uma estrada através do deserto, onde se pode acelerar, pois é pouco ou nada policiada, que liga aquela cidade a Cape Town, numa distância de mais de 400 Km.

Antes de chegar a Oudtshoorn parei num simpático restaurante de beira de estrada onde os bancos do bar eram selas de cavalo e na esplanada um dos empregados vinha cá fora de vez em quando assustar os macacos que roubavam os pertences dos clientes com tiros de uma espingarda de “paint ball”.



21 de fevereiro de 2019

Stellenbosch

No próprio dia em que mudei o óleo do motor, um Sábado, arranquei para dar uma volta de quatro dias pela Africa do Sul. Comecei por visitar o Cabo da Boa Esperança, local obrigatório para qualquer português. Junto ao cabo centenas de turistas saídos de camionetas acotovelavam-se para tirarem uma fotografia junto ao painel em madeira que indica o Cabo mais a sudoeste do continente africano.
De visita ao padrão comemorativo da passagem do cabo por Bartolomeu Dias, em 1488, a dois ou três quilómetros do cabo, não encontrei vivalma. Acabei por ter que fazer uma selfie, sem ninguém por perto.
De ali parti em direcção ao Cabo Agulhas que esse sim, representa o ponto mais a Sul do continente africano. O nome foi-lhe dado pelos navegadores portugueses quando, por volta de 1500, constataram que naquele ponto o Norte Magnético da Bússula coincidia com o verdadeiro Norte.
Pelas cinco da tarde, vendo que não chagaria lá nesse dia, vi um desvio para Stellenbosch, uma cidade universitária que ficou famosa por ser onde estão alguns dos principais produtores de vinho Sul Africano, e que ainda não tinha visitado, mesmo se quando esperava pela moto tenha ido com amigos que conhecera no Hostel beber uns copos a dois produtores mais perto de Cape Town, onde provámos excelentes vinhos, principalmente brancos.
Stellenbosch tem uma arquitectura herdada dos Holandeses, de casas brancas e ruas com muito arvoredo. Fiquei a dormir num Hostel muito bera mas onde, felizmente, era o único ocupante de uma camarata com seis camas. A gerente era uma simpática gorda negra que ficava de rastos de cada vez que tinha que subir as escadas, como quando chegámos à porta do quarto e verificou que se tinha esquecido das chaves.
Na manhã seguinte parti em direcção a Franschhoek, para visitar um famoso museu de carros antigos antes de rumar a Cabo Agulhas.
O Franschhoek Motor Museum está dentro de uma fabulosa propriedade produtora de vinho, pertencente ao milionário Sul Africano Johann Rupert que também ali faz criação de cavalos de corrida. Está impecavelmente tratada, tanto as vinhas como os jardins e as imponentes instalações de recepção que têm um restaurante  em que uma das paredes é um vidro com vista para o engarrafamento do vinho. Muito bem feito.
Já vi colecções melhores que esta mas nenhuma tinha os carros tão bem tratados e limpos. Impecavelmente restaurados os dourados e cromados brilhavam como se tivessem saído do stand naquele dia.
- Limpam-nos todas as semanas, perguntei?
- Todos os dias, respondeu-me um dos empregados.
De ali segui então até Cape d’Agulhas onde almocei uns excelentes filetes de um peixe local por menos de dez Euros, incluindo a cerveja.
A vila é típica piscatória, sem prédios, apenas de casas com um ou dois pisos, construídas maioritariamente em madeira.
Depois do almoço segui viagem até Mossel Bay, entrando para a parte costeira já na zona oriental da cidade. É uma colina que se estende até à praia com a maioria das casas com excelente vista para o mar. Fui até à praia e perguntei a um homem que chegava ao carro acompanhado das duas filhas miúdas depois de um banho de mar, se sabia de um Bed & Breakfast nas redondezas. Pediu que esperasse cinco minutos e segui-o até um dos poucos que havia naquela parte da cidade. Não podia ter ficado mais bem instalado pois o quarto tinha um terraço com fabulosa vista sobre o mar.
Perguntei ao casal de proprietário onde poderia jantar e disseram que chamariam um “shutle” que me levaria a um dos restaurantes da cidade e de volta sem cobrar.
- Dá-lhe apenas uma gorjeta no final que ele fica contente, disse-me a mulher.
- Quanto?
- 50 Rands. (o equivalente a 3,5 Euros)

E assim foi. Um tipo simpático, dos seus sessenta anos e rabo de cavalo a segurar-lhe os cabelos brancos, veio buscar-me pelas oito da noite e deixou-me num excelente restaurante para me passar a buscar uma hora depois. Do restaurante receberá mais algum mas não muito porque o caril de marisco e a cerveja não custaram mais que o equivalente a 12 Euros.

19 de fevereiro de 2019

Africa


Ouvi muitos avisos antes de vir para Africa. 
Porque não se tratava apenas de visitar um ou outro país africano mas atravessar o continente, de Sul a Norte. Ainda por cima junto à costa Ocidental, considerada a mais complicada, por quem sabe. 
O problema são países muito instáveis, com grupos revolucionários em alguns pontos, estradas que facilmente se tornam intransitáveis e pontos de assistência por vezes muito distantes.
Sabia que era um trajecto perigoso, talvez o pior que teria que enfrentar nesta Volta ao Mundo mas informei-me e, constatei que, andando perto da costa sempre que possível, evitavam-se alguns dos problemas. Mas não posso dizer que não sinto um certo receio, ao enfrentar esta etapa.
Descartei o trajecto mais simples, pela Costa Oriental, por duas razões: O facto de não se poder atravessar a Líbia neste momento obrigar-me-ia a apanhar um barco do Egipto para a Grécia ou Itália, forçando-me a percorrer um trajecto em sentido contrário ao que tinha feito no início da viagem. A segunda razão é que, há vinte anos, atravessara Africa, de Norte a Sul, perto dessa costa Oriental, quando fui de Londres à cidade do Cabo, dando a volta ao Mediterrâneo.
Agora queria conhecer o outro lado de Africa.

Aterrei em Cape Town, vindo de Portugal via Dubai, no dia 3 de Fevereiro. A moto já cá estava chegada também de avião mas de S. Paulo, no Brasil. Foi um Domingo. Na segunda feira de manhã  desloquei-me ao armazém do despachante, perto do Aeroporto, para desmontar a moto da estrutura metálica onde viajara e a colocar a trabalhar.
Não pegou. Pensei que se poderia tratar de velas, pela particularidade da gasolina brasileira ter uma elevada percentagem de Álcool. Troquei as velas e aproveitei para também substituir filtro de ar mas a moto continuou a não pegar. Resolvi então levá-la a um concessionário que tivesse uma máquina electrónica para permitir detectar o problema. Tive a sorte de encontrar um mecânico experiente que rapidamente chegou à conclusão que o problema era da Bomba de Gasolina. Embora a tivesse substituído recentemente no Brasil o álcool que ficou na Bomba durante seis meses destruiu os vedantes, inutilizando a Bomba. 
Não havendo aquela peça na Africa do Sul tive que mandar vir uma de Portugal, que acabou por ficar retida na alfandega durante três dias, só sendo libertada depois de vários mails que enviei a explicar que a peça não seria comercializada na Africa do Sul mas era para montar numa moto que sairia brevemente do país.
Durante os quinze dias em que durou todo o processo fiz turismo pela Cidade do Cabo e acabei por conhecer várias pessoas interessantes, como um Sul Africano de origem alemã que tem viajado por Africa de moto ou uma divertida miúda Mexicana que conheci no Hostel onde fiquei a maior parte do tempo.
A única rotina que fiz durante grande parte desses quinze dias foi tomar o pequeno almoço num café Italiano que havia ao lado do Hostel, o Giovanni’s, com um ambiente muito simpático e optimo café.
Depois visitei esta fantástica cidade, sem dúvida das mais bonitas do mundo, espalhada por várias baías e com montanhas por trás que proporcionam vistas espectaculares.
Subi à Table Mountain de teleférico, passeei de barco, fui a provas de vinhos nos produtores das redondezas, enfim, o que um turista normalmente faz por estas bandas.
Gostei de estar aqui mas, passados quase quinze dias, estava ansioso por partir, de moto.
Por isso, quando, depois de ter entregue a Bomba de Gasolina no concessionário onde a moto estava numa quinta feira e no dia seguinte uma hora antes de fecharem me dizerem que só a poderiam montar na segunda feira, falei com o gerente e pedi que retirasse a moto da oficina que eu mesmo montaria a Bomba na rua, à porta deles. Remédio Santo. Esperneou, o mecânico amuou, gritaram os dois um com o outro mas meia hora depois a moto estava a trabalhar.
Ainda nessa tarde, no pátio do Hostel, mudei-lhe a maneta de travão que estava torta e fiz outros pequenos acertos enquanto bebia uma cerveja trazida pela minha amiga mexicana. Que divertida, a miúda.
Na manhã seguinte, depois do habitual pequeno almoço no Giaovanni’s na companhia do meu amigo Uwe, ele levou-me até um comerciante de peças de motos conhecido onde tratei de mudar óleo de motor e filtro e comprar um apoio mais largo para o descanso lateral da moto. As muitas estradas de terra que irei encontrar a isso obrigam.
Aproveitei para também colar os autocolantes de alguns patrocínios que finalmente arranjei, na 
carenagem da Honda.

Estava pronto para a ultima etapa desta Volta ao Mundo.