26 de novembro de 2013

Dhaka 3





A situação aqui no Bangladesh está a aquecer. Ontem ao fim do dia o Governo anunciou a data das eleições, coisa que a oposição não queria que acontecesse enquanto não chegassem a acordo quanto à substituição deste governo por um de transição para o período pré-eleitoral. Resultado: revolta em vários pontos do país com 300 camiões a serem queimados nas estradas, desta vez parece que sem os condutores lá dentro. Hoje o secretário do Cônsul aconselhou-me a não sair do Hotel pois, segundo ele, estava perigoso andar nas ruas e muito poucos carros circulavam. Perguntei aqui se achavam que poderia ir até ao golf, que pertence ao exército e está numa parte mais calma da cidade e como acharam que não haveria problema lá fui, num destes “rickshaw” motorizados e protegidos por grades anti granada. Ontem já lá tinha estado a bater umas bolas e o “rickshaw” que me levou furou um pneu pelo caminho. Nestes casos o cliente tem que ajudar à substituição da roda pois, à falta de macaco, o condutor levanta o lado que tem a roda em baixo a pulso enquanto o passageiro coloca uma tábua por baixo da suspensão para manter a roda no ar. Não fomos tão rápidos a mudar o pneu como numa prova de todo o terreno mas quase. Só que o pneu suplente tinha uma “batata” no piso do tamanho de uma mão travessa, provocando vibrações extraordinárias e o pedido do condutor para que eu me sentasse encostado ao lado contrário.
A experiencia porque passei hoje, ao regressar do golf, foi pior. O “rickshaw” não só estava prestes a gripar, com um cheiro terrível a óleo queimado, a embraiagem a patinar e o meu banco, situado em cima do motor, a atingir temperaturas extremas, como o homem decidiu sair do golf e meter pelo sentido contrário da faixa de rodagem, numa estrada com separador central, até encontrar passagem para o outro lado. Eu ia agarrado à rede, a rezar a Alá para que não levássemos com um carro ou camião em cima, a passarem-nos razias que o triciclo até abanava. Em dia de greve, em que qualquer oportunidade é boa para passar uma trotineta daquelas a ferro não foi grande ideia. A coisa lá correu bem e regressei ao Hotel são e salvo.
Agora, farto das visitas a ministérios para reuniões sem resultados práticos, combinei com o secretário do Cônsul que ele me visitava todas as manhãs a dizer como estava a situação e depois partia sozinho para as reuniões. Até porque a zona dos ministérios parece ser das mais perigosas para se circular nestes dias de greve decretada. O processo é demorado mas está em marcha para um dia, não se sabe bem quando, receber a autorização que me permite entrar com a moto no país. Entretanto vou ter que dar um salto a Delhi, de avião, para tratar do visto para Myanmar, que não pode ser passado aqui.
Não chamo tempo perdido a estes períodos de estadias forçadas nos locais que visito, porque vou conhecendo melhor gentes e costumes mas, pelo “andar da carroça”, esta volta ao mundo vai demorar mais que o previsto inicialmente.

23 de novembro de 2013

Dhaka - 2



Estou há uma semana em Dhaka, não só a tentar obter autorização para a moto entrar no Bangladesh como visto para Myanmar, tarefas quase impossíveis mas que espero conseguir resolver brevemente.
Aqui, a agravar o problema que já existia de exigirem uma garantia bancária para a moto entrar, têm medo que eu ande sozinho pelo país.
Têm eleições dentro de pouco mais de um mês e a tenção política é grande. O governo do país tem rodado, tal como em Portugal, entre dois partidos, aqui chefiados por duas mulheres. A atual Primeiro Ministro é filha de Mujibur Rahman o primeiro governante e fundador da nação, enquanto a líder da oposição, Khaleda Zia, é mulher do segundo presidente eleito, ambos assassinados.
O partido da oposição, por chegar à conclusão que tinha poucas hipóteses de ganhar, decidiu boicotar as eleições se o governo não remodelasse significativamente o atual elenco e para mostrarem que falavam a sério decretaram, a semana passada, três dias de greve geral em que todo e qualquer veículo era proibido de circular nas estradas.
Eles aqui não estão com meias medidas e alguns dos que foram apanhados a circular pegaram-lhes fogo com condutores e passageiros lá dentro. Resultado: 70 feridos e mais de vinte mortos.
A Primeiro Ministro veio ontem acusar a sua rival de assassina e disse que um dia seria julgada por essas mortes. O clima aqueceu e para a semana prevêem-se mais uns dias de greve durante os quais acho preferível deixar a moto parada. Vamos ver o que isto dá.
Entretanto em Dhaka continuo com reuniões quase diárias, com vários elementos governamentais, para tentar que me deixem atravessar o país com a moto, no intervalo das greves.
Ontem estava a ver o caso mal parado porque o Cônsul me deu a entender que ele próprio estava com medo que eu me fizesse à estrada e lhe causasse problemas mas hoje de manhã convenci-o a voltar a pegar no assunto e amanhã regresso com um dos seus homens a uma espécie de Ministério da Economia a que chamam National Board of Revenue e que parece ser onde se tomam todas as decisões envolvendo dinheiros públicos neste país.
A alternativa que se apresenta a atravessar o Bangladesh não só me obriga a fazer mais 1000 Km pelas terríveis estradas do Norte da India como a circular muitos mais quilómetros numa zona oriental da Índia que em parte é controlada por rebeldes que pretendem a independência dessa região e onde tem havido muitos conflitos.
E como aqui Sábado é o dia de folga hoje fui passear pela cidade, que Domingo trabalha-se. Visitei a parte antiga, que não tem muita graça para além do movimento das ruas com velhas lojas de tudo quanto há e “rickshaws” a pedal a entupirem o transito no meio de homens com cestos cheios de galinhas vivas ou uma vaca a ser transportada muito incomodamente numa pequena carrinha de caixa aberta. Enfim, de tudo um pouco.
Almocei por ali e à tarde fui visitar o National Museum. O país tem pouco mais de quarenta anos de vida e por isso têm que inventar coisas para mostrar. Além da flora, que inclui um cacho de bananas em exposição, e da fauna, com tigres embalsamados e o esqueleto do que provavelmente terá sido a única baleia que foi parar aquelas águas, passando por armas antigas e outras banalidades, têm uma exposição de retratos pintados de pessoas famosas onde, entre os cerca de 50, que incluem Einstein, Picasso, Edisson, etc., está Vasco da Gama, que andou por estas bandas.
Finalmente o mais interessante é a fantástica coleção de fotografias e copias de capas de jornais ampliadas que contam a história da conquista da independência, em 1971, depois da chacina a que foram sujeitos pelo Paquistão e que só acabou quando a Índia veio em seu auxilio depois de muita pressão internacional que incluiu um concerto organizado pelo George Harrison.  

22 de novembro de 2013

Dhaka





O comboio que apanhei para Dhaka era muito melhor do que estava à espera. Mesmo não havendo bilhetes de primeira classe consegui um dos três que tinham na classe AC (ar condicionado). Era uma cabine daquelas que havia antes nos comboios portugueses, com dois bancos corridos, em veludo, que nem estavam em mau estado nem muito sujos e duas camas por cima, para quando a viagem é noturna. Os meus companheiros de viagem foram um homem que trabalha para uma organização de ajuda humanitária e um dirigente dos caminhos de ferro que, sendo muçulmano, de meia em meia hora estendia uma toalha em cima do banco e, descalço, colocava-se de joelhos em cima da toalha, com um boné redondo na cabeça, a testa quase a tocar no banco, virado para Meca, que, por mais curvas que o comboio desse parecia ser sempre na mesma direção, a rezar. Mal acabava, uns cinco minutos depois, endireitava-se, tirava o chapéu e aí estava ele pronto para mais meia hora de viagem.
Passadas umas sete horas, durante as quais nos foi servido o almoço que cada um de nós encomendou, chegámos à estação de Dhaka.
O da organização humanitária, por ir para um Hotel perto do meu, partilhou o táxi, ou seja o “rickshaw” motorizado, que os táxis não aceitaram o dinheiro que  queria pagar, mesmo sendo a meias.
Os “rickshaw” aqui, coisa que nunca tinha visto, têm portas em grade metálica que o condutor tranca por dentro. Perguntei para que serviam e o meu colega de viagem explicou-me que passou a ser obrigatório há uns tempos em Dhaka porque havia o costume de assaltarem os passageiros, muitas vezes com a colaboração do próprio condutor. Agora este, depois de trancar as nossas portas, deixando-nos presos naquele mini carro celular, trancou a sua por dentro com um cadeado.
O Hotel era bom mas de preço europeu.
No dia seguinte às dez da manhã, conforme combinado, o secretário do Cônsul foi buscar-me ao Hotel para tentarmos resolver o problema da entrada da moto no Bangladesh. Expliquei-lhes o assunto, a ele e ao Cônsul, um homem de negócios de sucesso no Bangladesh e desde então temos estado em reuniões diárias, eu e o secretário, em diversos organismos oficiais, ainda sem resultados práticos mas que parecem ir no bom caminho. Este secretário do Cônsul, um homem local, dos seus 60 anos, mas filho de uma inglesa e de um francês, diz-me optimista: “the difficult problems, we deal with them straight away, the impossible ones take a little longer”.  E dá uma gargalhada. Vamos lá ver no que isto dá.

18 de novembro de 2013

Hilli




Aqui já consideram que faço parte da vila. Hoje de manhã, quando saí para tomar o pequeno almoço na barraca do costume e estava fechada acabei por ir a outra mais à frente. Um cliente, vendo-me a tentar explicar ao miúdo o que queria, virou-se para ele e disse: “ele come dois pães daqueles redondos sem molho e bebe um chá com leite”. E lá veio tudo certinho. Não reconheci a cara do homem mas costumava ver-me na tasca vizinha. Não há ninguém entre a população que não me reconheça como o estrangeiro que apareceu aqui há dias com uma moto do tamanho dum boi.
Como estava em Hilli há quatro dias a mandar mails para a capital e para o ACP em Portugal, para além de me deslocar três ou quarto vezes por dia à Alfandega, na tentativa de conseguir a licença para entrar no país com a moto, sem qualquer resultado prático, hoje decidi arrancar para Dhaka de forma a tentar resolver lá o problema.
Não é fácil sair daqui sem ser numa camioneta de passageiros a cair de podre, para enfrentar uma viagem de doze horas. A estação de comboio mais próxima fica a 20 Km mas foi para aí que me dirigi, evitando o pesadelo que imaginei ser a viagem na camioneta.
O “Tiger” levou-me até lá. Os primeiros 4 Km foram percorridos num “rickshaw” em que as pessoas, vendo-me com uma mala, perguntavam ao anão: “Onde é que ele vai”? ao que ele radiante ia respondendo: “vai para Dhaka, vai para Dhaka”, como se fosse para o outro lado do mundo. Ás vezes até dizia a quem não perguntava nada. “Ele vai para Dhaka, tratar dos papéis da moto”. “Ah, sim?” respondiam eles.
Passados uns 20 minutos, com um desgraçado a pedalar e nós os dois sentados atrás, chegámos a outra aldeia onde havia o autocarro para a estação, numa terceira localidade. Um acabara de partir mas não tivemos que esperar muito para aparecer outro, destes que ficamos espantados como é possível aquilo andar, de podre que está. Como fomos dos primeiros a entrar ainda arranjámos lugares sentados mas rapidamente começou a atolhar de povo e o “pica” de molho de notas na mão, sem qualquer espécie de bilhete, que isso representa desperdício de papel, lá ia recolhendo notas de dez cêntimos até prefazerem os 40 que custava a viagem. No ultimo banco, por trás de nós, um miúdo não quis pagar o bilhete, talvez por viajar com o irmão mais novo ao colo e achar que só deveria pagar um, e o “pica”, depois de grande discussão com o rapaz não teve com meias medidas, agarrou-lhe uma orelha e resolveu rapidamente o assunto.
Chegados à vila da estação segui o “Tiger”, mínimo com a minha mala às costas, por ruelas de terra apinhadas de gente. Eu perguntava-lhe, por gestos se era de certeza aquele o caminho da estação mas ele, de passo confiante quase que me dizia: “mas acha que não sei por onde ando”?
Por fim lá chegámos à plataforma. Em plena linha férrea estava montada uma feira do género da de Carcavelos, com tendas estendidas até aos carris e povo por todo o lado. Não havia problema. O próximo comboio só estava previsto para uma horamais tarde. Só visto.
Fui recebido pelo chefe da estação que me informou que o comboio seguinte para Dhaka, que pensávamos fosse às oito da noite, estava marcado para a uma da manhã mas o mais natural era vir atrasado uma ou duas horas. De qualquer forma os três únicos lugares que tinham reservados para aquela estação em primeira classe já estavam ocupados tanto para aquele comboio como para o da manhã seguinte, que estava marcado para as dez e meia mas também deveria vir atrasado uma ou duas horas.
Segundo me informaram mais tarde é o “lobby” dos autocarros que faz atrasar os comboios propositadamente, para não lhes tirarem tantos clientes.
Preferi o da manhã e, depois de comprar o bilhete, perguntei onde haveria um Hotel para ficar essa noite onde o “Tiger” me levou antes de se despedir para regressar a Hilli.  Era destas espeluncas a que já estou habituado. O recepcionista pediu-me cinco euros pela estadia. Achei caríssimo. Ao lado havia uma feira onde fui comprar uns amendoins e bananas que foram o meu jantar. Deitei-me cedo.

16 de novembro de 2013

Bangladesh



O Bangladesh existe há pouco mais de 40 anos. Quando os ingleses deixaram a Índia, em 1947, parte do território ficou dividido entre Paquistão Oriental e Paquistão Ocidental, com a Índia a separar esse novo país em dois. O sistema durou mais que o esperado e só em 1971 a parte oriental do Paquistão se tornou independente, passando a designar-se Bangladesh.
É um dos países mais pobres do mundo. Tem menos do dobro de Portugal em tamanho e cerca de 140 milhões de habitantes. É muita gente para tão pouco espaço. A maioria da população dedica-se à agricultura de cereais e legumes. Os seus campos são férteis, banhados pelos rios que vêm dos Himalayas mas, por mais que plantem, o arroz que produzem não chega para alimentar tanta gente e acabam por ter que importar algum da Índia.
A única industria com volume é a de roupa, em que as trabalhadoras são exploradas através de salários baixíssimos e condições péssimas, para os patrões conseguirem vender as peças que fabricam aos europeus a preços ridículos. Estas empregadas fabris estavam ontem a manifestar-se para pedirem um aumento para 100 dólares mensais. Atualmente ganham 38 e os patrões propuseram 45. Mesmo tendo em conta que a vida aqui é barata são ordenados miseráveis. Refira-se que as fábricas concorrentes do Vietnam e Cambodja pagam cerca de 70 às suas empregadas enquanto na China ganham a “fortuna” de 140 dólares mensais.
Além disso, a maioria dos prédios onde estas fábricas se instalaram estão decrépitos, tendo um caído há pouco tempo, matando mais de mil destas desgraçadas.
A situação política está explosiva e, como referia ontem, a oposição decretou uma greve de quatro dias durante os quais não podem circular veículos e muitas das lojas estão fechadas.
Embora este local onde estou junto à fronteira com a Índia seja uma pequena vila hoje passou aqui à porta do Hotel uma barulhenta manifestação e à noite ouvi um vibrante comício em que os oradores gritavam palavras de revolta. Foi seguido por um concerto de um artista cá da aldeia a quem não vejo grande futuro. Estive para lá dar um salto mas ainda bem que não fui porque um rapaz que aqui trabalha na alfandega disse-me que acabou tudo à pancada. De facto a música parou de repente.
O Hotel onde me instalei, o único na vila, não tem restaurante e por isso tomo o pequeno almoço numa barraca perto onde servem uma espécie de pão frito e chá com leite. Ao almoço vou com um empregado da alfandega, um homem que não mede mais de 120 cm e me visita três ou quarto vezes por dia para perguntar se está tudo bem, almoçar a um restaurante mais longe, de “rickshaw”, destes a pedal. Aliás, são praticamente os únicos veículos que circulam nesta vila fronteiriça, para além dos camiões que passam a fronteira com arroz e cereais ou alguns triciclos motorizados, muitos deles com um ar artesanal e motores de moto serra, que pegam com uma corda.
Atravessar a vila de “rickshaw”, cerca de 1 Km, custa o equivalente a dez cêntimos e o “Tiger”, este meu guia anão, raramente me deixa pagar mais. Por um lado tem razão. Se lhes desse um euro, no dia seguinte havia uma guerra para ver quem me levava.
O “Tiger”, não fala uma palavra de inglês assim como ninguém no Hotel, mas lá nos vamos entendendo. No restaurante todos me observam, atrapalhado, a tentar cortar a carne com um garfo porque comem com as mãos. O criado serve-me o arroz no prato com uma tijela mas quando lhe digo que só quero metade da dose tira o que está a mais com a mão para a panela. Ontem, um cliente que já viu estrangeiros disse para me arranjarem uma faca e fartaram-se de rir com o meu ar de contentamento por ter uma faca e, claro, espantados a observar como usava garfo e faca, o garfo de sobremesa e a faca de talhante. Passou a ser o espetáculo da hora de almoço naquele restaurante e o “Tiger”, como que a vender o “show”, vai-lhes contando a minha história, que vim lá de um país longínquo que eles não fazem ideia onde fica mas que é ainda mais longe que o Paquistão, numa moto do tamanho de um carro.
Ficam todos a olhar, como se eu fosse um animal raro, fazem-lhe algumas perguntas que não faço ideia de que tratam e riem-se deste espécimen que come com talheres.