3 de março de 2014

Cambodja



Dia fantástico passado na floresta.
Ontem tinha ficado nesta vila, com as ruas em terra batida, junto a um rio. Depois de me aconselharem a não seguir viagem pelo outro lado do rio decidi ficar por aqui e, mais tarde várias pessoas me disseram-me que a estrada que pretendia apanhar estava praticamente intransponível, com grande quantidade de areia solta onde a “Cross Tourer” se enterraria facilmente.
Um miúdo veio sugerir-me uma alternativa original. Conhecia uma homem que vivia na floresta e propôs-me fazer um passeio através da densa floresta, uma espécie de “trecking” com a ajuda deste “homem da floresta”.


Achei boa ideia e, passava pouco das sete e meia da manhã quando arrancamos os dois na minha moto junto ao rio, para o atravessarmos sete ou oito quilômetros à frente. A primeira armadilha surgiu ainda nesse trajeto quando uma ponte caída me obrigou a atravessar outra muito rudimentar, estreita e de ar frágil. Esta estrada em que seguíamos era só para peões e motos pois não tinha largura para caberem carros e esta ponte não estava pensada para ser transposta por uma moto de 300 Kg. Felizmente aguentou o esforço.
A entrada para a barcaça era através de uma rampa estreita, em terra batida com areia solta e muita inclinação, com um barranco do lado de fora que acabava no rio. A coisa lá correu bem mas na saída, idêntica mas a subir, deixei cair a moto, felizmente sem estragos. Depois, no trajeto até à floresta, tive que atravessar uma ponte que tinha abatido a meio mas que continuavam a utilizar. Pedi ao miúdo para desmontar a lá passei sem problemas.
Chegámos a uma pequena aldeia na floresta com quatro ou cinco casas que não eram mais que telheiros sem paredes onde as pessoas se abrigavam das chuvas na época das monções e do sol nestes dias de calor. Um velho preparava folhas de tabaco que plantara junto ao rio enquanto a sua mulher fumava, tranquilamente, um cachimbo. As crianças da pequena aldeia, ao verem aparecer a “Cross Tourer” com um homem de capacete, devem ter pensado tratar-se de um extra terrestre e desataram a fugir assustadas. Aqui só a partir dos sete anos usam alguma peça de roupa.
Deixei a moto na aldeia e um miúdo guiou-nos, primeiro através de alguns campos de arroz e depois de floresta, durante cerca de 15 minutos, até casa do tal “homem da floresta” que vivia com uma mulher e dois filhos pequenos.
Iniciámos então a nossa caminhada através de densa floresta, onde o homem seguia à frente, manipulando uma espécie de pequena foice, com a qual ia abrindo caminho por entre a vegetação. O trajeto incluiu travessias de rios em que descalçamos os sapatos e eu também as meias, que provocaram o riso do “homem da floresta” e do miúdo que me acompanhava.  Pelo caminho passamos por várias crateras abertas pelas bombas largadas pelos americanos durante a guerra do Vietnam. Esta zona fica perto da fronteira e muitos dos guerrilheiros escondiam-se nesta floresta, razão pela qual foi tão bombardeada. O vizinho Laos, por onde passavam muitos dos abastecimentos dos Vietcongs, é considerado o país no mundo mais bombardeado de sempre, por milhar de habitantes. Durante a guerra do Vietnam os americanos descarregaram ali, em média, um bombardeiro B52 a cada 8 minutos durante dez anos seguidos, com o país a ser mais bombardeado nessa época que todos os países europeus juntos durante a segunda guerra mundial.
Passada uma hora de caminhada começámos a ouvir um barulho de veículo a desbravar caminho através da floresta. Cruzámo-nos então com um camião militar carregado de árvores ao que o “homem da floresta” fez um ar de zangado. Mais à frente encontramos várias árvores abatidas e ele parava e ficava um momento em frente de cada uma, como quem vela um morto.
Caminhávamos há três horas quando chegámos a um rio onde ficámos a tomar banho. Os meus companheiros de viagem lançaram uma rede que traziam e pescaram um peixe que assaram numa fogueira para o nosso almoço, acompanhado por arroz para eles e dois ovos cozidos para mim, que tínhamos trazido da vila.
Partimos de volta pela uma e meia da tarde. O “homem da floresta”, a galgar caminho sem sequer uma bússola, de vez em quando perdia-se mas acabava por “encontrar o norte” e, depois de passarmos por umas barracas isoladas onde mulheres descascavam arroz num almofariz, acabámos por encontrar o rio que atravessamos descalços para chegar de volta a casa dele já sem força nas pernas e com os pés a arderem. Tínhamos caminhado seis horas através da floresta.
No regresso de moto à vila da outra margem, as mesmas peripécias ao atravessar as pontes abatidas e a dificuldade do embarque e desembarque na barcaça,  quando vi a moto perto de cair ao rio com o condutor. Mas, desta vez, não houve quedas a registar.

3 comentários:

  1. Que aventura fantástica. Essa moto devia era estar toda descascada sem esse peso todo. Muito vai ela ao chão. Mas aguenta-se. É uma fiel companheira.

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  2. Li toda a aventura hoje, dispensa de Carnaval, pois temos gostos parecidos, pelo menos aventuras de moto e viagens, idades identicas e o deslumbre por novos povos e conhecimento. Soube da viagem por um colega de trabalho que o conhece e fiquei tambem a saber que esteve com o consul em Pangim, meu conhecido. Ja estive por algumas das paragens, conheco algumas das burocracias e tem sido um recordar constante. Desejo a maior sorte. Um abraco, Joao Parente

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  3. Antes de mais parabéns pela coragem e pela aventura. Sem dúvida que é uma marca que fica para o resto da vida e uma experiência indiscritível que só vivida se possa sentir.

    Eu já tinha ouvido falar desta viagem, mas só recentemente a li de "fio a pavio" e acho impressionante. Adorava fazer uma viagem igual por isso acompanhar alguns viajantes motard's que existem pelo mundo.

    Por outro lado, e compreendendo que gostaria de receber mais feedback de nossa parte, não posso deixar de sugerir outros canais de comunicação mais "instantâneos" ou mais mediaticos como o facebook ou o youtube, que perime ter seguidores e com isso recebermos a informação no "feed".

    De qualquer forma fica como sugestão a inclusão de filmes e mais fotos acompanhado da excelente e clara descrição do diário.

    Muita força e continuação de uma excelente viagem, estarei por aqui e noutros canais de informação que utilizar.

    Abraço

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