Ontem, quando saí de Isfahan, estava um dia de sol lindo, mas 8 graus de temperatura. Parti em direcção a Yazd e passados cerca de 50 Km entrei no deserto de Siyahkuh. A temperatura foi subindo até aos 20º numa zona perto da qual são atingidas, no verão, as mais altas temperaturas do planeta. Rectas infindáveis atravessam as planícies onde o transito é quase todo composto por camiões, a caminho das áreas mais remotas do país e da principal fronteira com o Paquistão.
Quando estava em Portugal tanto a embaixada paquistanesa, como o Ministério dos Negócios Estrangeiros e pessoas que tinham estado na região, desaconselharam-me vivamente a atravessar o Paquistão, por grande parte do território não estar controlado pelas forças governamentais e ser extremamente perigoso. No Irão falei com pessoas que me disseram haver vários viajantes a atravessar o território sem problemas, de maneira que tentei aqui que me dessem o visto para passar. Infelizmente foi impossível, pois exigem que seja passado no país de origem do turista, pelo que não me resta outra solução senão ir até ao Sul do Irão, apanhar um barco para o Dubai e daí outro para Mumbai, na India, passando assim ao largo do Paquistão. Espero, dentro de dois dias, chegar ao porto iraniano de Bandar-e-Abbas.
Estava mais ou menos a meio do caminho de Yazd, quando, no meio daquele deserto de terra, se levantou uma ventania, idêntica à que tinha apanhado à chegada a Isfahan e que me obriga a rodar a baixa velocidade com a moto a abanar muito.
Chegado à cidade a meio da tarde encontrei um simpático Hotel. Jantei no restaurante que tinham no telhado e onde serviam refeições típicas Iranianas com vista sobre a cidade. Excelente carne estufada acompanhada de batatas cozidas, legumes e iogurte.
Hoje da manhã fui visitar a cidade onde, entre outras coisas, existe o templo do fogo. Os Zoroastros veneram o fogo como um Deus e este seu templo tem uma fogueira central que mantêm a arder há mais de 400 anos, segundo dizem.
Pelo meio dia e meio, saí em direção a Persépolis a 400 Km de distância.
Desta vez atravessava o deserto de Dar Anjir e, com as temperaturas à saída do Hotel a rondarem os 20º, hesitei entre sair de jeans ou vestir as calças do fato. Felizmente optei pela segunda solução pois tinha percorrido pouco mais de 50Km quando saí do deserto para entrar numa zona montanhosa e a temperatura, numa dezena de quilómetros, baixou dos 17º para os 8º, com as bordas da estrada cobertas de neve. É incrível como as oscilações de temperatura aqui são tão acentuadas.
Como saí tarde adoptei um ritmo mais rápido que o habitual, na casa dos 150, 160 Km/h para chegar a tempo de visitar as ruínas da antiga Persépolis. Os condutores dos camiões, que nunca viram uma moto a rodar a mais que 80 Km/h, ficam maravilhados e tocam a buzina em sinal de contentamento. No Irão são proibidas motos com mais de 250 c.c. e 99% têm mesmo apenas 125c.c.
Depois de visitar Persépolis, onde os palácios há 2500 já tinham requintes como água que vinha da montanha com canalizações subterrâneas, liguei para o contacto que o meu amigo Hosseini, de Arak, me tinha dado. Dois dos irmãos Omidvar vieram ter comigo às ruinas, um rapaz dos seus vinte e poucos anos e uma miúda muito bonita de 18 anos. Guiaram-me até à casa familiar, onde fizeram questão que ficasse.
A minha presença foi razão para a mãe Omidvar cozinhar um jantar especial e convidar toda a família. A irmã do pai, cujo filho está noivo da filha deles e os filhos casados, acompanhados das mulheres e marido da mais velha, mais três animadas crianças.
É uma família modesta ao estilo da do Hossein, de Urumia.
A casa resume-se a uma sala grande, uma cozinha e um quarto onde a irmã de 18 anos costuma dormir e estudar. A sala é um espaço amplo onde os únicos objetos são uma televisão num dos cantos, tapetes Persas no chão e algumas almofadas. Não existe um único móvel ou quadro na parede. Ali todos os Omidvar tomam as suas refeições sentados no chão, descansam durante o dia e dormem de noite, em cima de cobertores que estendem pelo chão.
Depois do excelente jantar de cabrito assado ficamos à conversa apoiados nas almofadas. Só os dois irmãos mais novos, que me foram buscar, falam inglês. A miúda foi pedida em casamento pelo primo direito, sete anos mais velho, quanto tinha 12 anos. Vão casar-se no próximo ano, quando ela fizer 19. Perguntei-lhe se estava apaixonada pelo primo e ela disse que não, mas que era um costume iraniano e que era muito mau uma rapariga chegar à idade dela sem ter tido um pedido de casamento. Como os contactos com rapazes são evitados em todo o lado, desde transportes, a escolas ou festas, que se resumem aos casamentos, muitas destas miúdas acabam, tal como a Mariam, a casar com os primos direitos.
A única viagem que fez na vida foi quando os pais a levaram a Meca, tinha ela 14 anos. O pai é devoto ferrenho e ficou chocado quando lhe disse que não acreditava em qualquer Deus. Antes tinha perguntado se Portugal fazia fronteira com os Estados Unidos e, sentado ao meu lado, viu, fascinado, fotografias do meu trajeto.
Chegada a hora de irmos dormir instalaram-me um cobertor e uma almofada entre a mãe e o irmão mas eu sugeri ficar sozinho no único quarto, com a desculpa que costumava ler até tarde e lá fiquei. O resto da família dormiu, como habitualmente, na sala.
No dia seguinte tomámos todos um excelente pequeno almoço naquele espaço comum, à base de pão iraniano feito pela mãe, leite vindo diretamente da vaca, ovos mexidos e fruta.
Pela dez da manhã apareceu o meu amigo Hosseini que tinha feito 800 Km desde Arak para me voltar a ver. Ele é amigo de um dos mais velhos dos Omidvar de maneira que fomos passar o dia a uma barraca que este irmão construiu junto a uma barragem. Antes passámos a buscar carne, já preparada e temperada, para fazer espetadas e lá almoçámos um churrasco e ficámos o dia a conversar, fumar cachimbo de água e beber xarope chiraz, uma bebida alcoólica clandestina feita por eles e que nem é má de todo, principalmente a partir do terceiro copo.
Como aquilo se arrastou também para jantar, acabei por voltar a dormir em casa deles.
A mãe criticou termos estado a beber álcool e lembrou que é proibido no Irão.
Pelas duas da manhã começou a chover e ouvi a mãe Omidvar dizer qualquer coisa ao filho mais novo que deu uma volta no cobertor e respondeu um gemido. Então a senhora levantou-se e, debaixo de chuva, foi tapar a minha moto com um grande plástico. Extraordinário. Não vou esquecer esta gente.