21 de abril de 2019

Dolisie - Ndende 4

Pus o meu saco de roupa suja a fazer de almofada por baixo do lençol, tirei a lâmpada do casquilho por não existir outra forma de a desligar e adormeci ao som daquela pretensão de ar condicionado. Acordei oito horas depois, cheio de calor. O aparelho estava desligado.
- É que durante a noite desligamos o gerador.
O meu prato sujo do jantar estava onde o havia deixado, em cima da mesa plástica da entrada. Entornei água do gerrican da cozinha para o lavar e à frigideira e fiz os restantes ovos para o pequeno almoço.
No rio mulheres lavavam roupa e crianças.
Antes de arrancar perguntei ao homem da mão partida se achava que já poderia montar o guarda lama na moto.
- É melhor não. Só no Gabão. Ainda pode apanhar dessa lama pegajosa.
Não tinha percorrido cinquenta metros na estrada de terra de acesso ao Hotel quando, a dez à hora, ainda em primeira, os tubos do travão da frente que, à falta do guarda lama, havíamos fixado à suspensão com bocados de câmara de ar, prenderam no pneu, trancaram a roda e… catrapum, fui ao chão. Bom começo de dia.
Estavam dois homens ali a passar que foram chamar um terceiro para levantarmos a moto sem ter que desmontar as malas e segui até à vila muito devagar, onde voltei a montar o guarda lama, não fosse o diabo tecê-las.
Meia hora depois voltei a cair, à saída de um lamaçal. Pensei que ficaria mais uma hora à espera de alguém, como no dia anterior mas, passados cinco minutos, surgiu um jipe em sentido contrário. Trazia três homens dentro mas só um saiu para me vir ajudar.
- Venha você também, disse para o condutor que parecia não querer sujar os sapatos.
Lá saiu do carro e até era simpático. Ficaram espantados por verem um velho numa moto daquele tamanho por aquelas bandas.
Numa das vezes que parei antes de atravessar um lamaçal vinha um rapaz dos seus trinta e poucos anos, a pé, que parecia não fazer parte daquele cenário. Vestido de preto, tinha ar de intelectual de esquerda, com rabo de cavalo, um bigode fininho à mosqueteiro e óculos escuros modernos. Passou por mim sem dizer nada mas parou uns dez metros à frente, voltou-se para trás e perguntou:
- Você é turista?
- Sim, sou.
- Como se faz para ser turista? É que eu gostava de ser e não sei como.
A questão já me tinha sido colocada de outra forma. Muitas pessoas aqui pensam que turista é uma profissão e até nas fronteiras já me perguntaram se a minha profissão era turista.
A este disse-lhe que, para ser turista, tinha primeiro que trabalhar a vida toda de forma a amealhar dinheiro e, quando fosse velho como eu, então poderia ser turista. Ficou satisfeito com a explicação e lá partiu para a sua vida.
A fronteira tinha uma velha barreira com ar de ser muito pouco aberta, junto a umas enormes valas na estrada de terra. Antes de levantarem a barra de ferro ferrugenta tive que passar por três barracas de madeira distintas para verificarem o meu passaporte e escreverem os meus dados em folhas de enormes livros. Só um deles me carimbou o passaporte.
Vinha na esperança de ali encontrar uma bomba de gasolina e onde pudesse trocar dólares pois tinha deixado os últimos Francos CFA, a moeda utilizada no Congo, Gabão e Camarões, na compra dos ovos e cerveja do dia anterior. A moto havia ali chegado só com um resto de gasolina e não poderia partir sem abastecer. Um miúdo veio dizer-me que vendia gasolina, em garrafas de água, a 1.000 Francos o litro, quase o dobro do que custava nas bombas. O problema é que não aceitava dólares pois nunca ía à cidade mais próxima do lado do Congo, Dolisie, de onde eu havia saído no dia anterior, mais de 200 Km atrás. Perguntei ás poucas pessoas que estavam por perto, incluindo os guardas fronteiriços, se alguém trocava dólares mas todos negaram. Até que um homem me disse para lhe mostrar uma nota de dólar. Quando a tirei do bolso verifiquei, para meu espanto, que ainda tinha 3.000 Francos CFA. Estava safo. O rapaz foi buscar as garrafas e perguntei-lhe se, além dos três litros não me vendia mais um por um dólar. 
- Por dois vendo.  
De maneira que reabasteci quatro litros com 3.000 Francos e dois dólares, suficientes para chegar à primeira vila do Gabão. 
Do lado do Gabão não existe ali um posto fronteiriço mas apenas um polícia numa barraca que verificou se eu tinha visto, escreveu os meus dados numa folha de papel e disse-me que teria que ir à delegação fronteiriça na primeira vila, a cerca de 40 Km.
Lá segui viagem sem voltar a cair pois nesta parte as enormes poças não estavam tão enlameadas e escorregadias. Por isso comecei a passá-las sem parar para avaliar o nível da água e, numa delas, era tão alto que a água passou por cima do pára brisas da moto. Tive medo que tivesse entrado para o filtro de ar, que seria o suficiente para partir o motor mas, felizmente, não.
Quando atingi as primeiras réstias de alcatrão à entrada de Ndende senti um enorme alívio. Uns miúdos tomavam banho num rio à entrada da vila e parei para me refrescar. Tinha acabado a água, estava a morrer de sede, já desidratado e sem dinheiro para comprar água. Estive muito tentado em beber a água do rio mas resisti, com medo que pudesse estar contaminada.
Fui à cidade e perguntei numa mercearia se podia pagar uma garrafa de água em dólares mas recusaram. Com poucas forças fui até à bomba de gasolina mais próxima. Pedi para falar com o gerente e perguntei se aceitava dólares para pagar gasolina e água. 
- Não. Ainda se fossem Euros.
Procurei na carteira. Ainda tinha uns Euros. Trocou-me cinquenta aproveitando-se da minha necessidade para fazer um cambio ruinoso mas ficava com dinheiro para água e gasolina. Bebi um litro logo ali, praticamente de seguida, e abasteci.
Cansado, procurei um Hotel onde ficar. O primeiro era pretensioso e caríssimo, o segundo, onde cheguei seguindo o dono através de uma estrada cheia de grandes poças, a recordarem-me pesadelos recentes, também recusei.
Fiquei num duma simpática e extrovertida gorda que, quando entrei, estava deitada no sofá a ver um jogo de tênis com o Federer, de quem revelou ser fan. Simpatizei logo com ela. Discutia desporto com os clientes como um homem. Só lhe faltava a garrafa de cerveja na mão. Passava o dia a ver desporto na televisão e não perdia um Grande Prémio ou Motogp. Contou-me que o filho do Schumacher havia assinado pela Ferrari como piloto de testes. Trocou-me dólares ao preço de mercado.

Com algumas excepções, como esta mulher, no Gabão as pessoas não são tão simpáticas como no Congo. De feitio parecem-se mais com os velhos colonizadores franceses, mas com outra cor de pele. Bem, a maioria dos franceses também já terá esta cor de pele.

3 comentários:

  1. Grande Chico, és um verdadeiro Português com o espírito do Século XV

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  2. Boa continuação Chico. "Os cães ladram mas o Chico passa"! Forte Abraço.

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