Na manhã em que parti de Argerich o Adalberto disse que me acompanharia na
sua moto durante meia dúzia de quilómetros mas pediu-me para antes passarmos na
Igreja da aldeia. No dia que passámos juntos não falámos em religião e ele não
tinha ideia que eu era ateu mas pediu-me, por favor, para que o acompanhasse à
pequena igreja. Lá chegados, benzeu-se e mostrou-me primeiro, com orgulho, a
estátua de cristo por cima do altar que referiu ser “talhada numa só peça de
madeira”. De seguida disse-me:
- Francisco, eu não sei se és crente ou não mas eu sou e pedi que viesses
aqui porque quero pedir a Deus que te acompanhe e te proteja nesta tua viagem.
E assim fez a sua oração.
Este Adalberto é um tipo encantador, típico das pessoas que vivem fora das
grandes cidades e um enorme contraste com o género de pessoas que vim a
encontrar em Buenos Aires e arredores.
Ele perdeu a mãe quando tinha quatro anos e o irmão dois. Lembra-se muito
pouco dela mas, embora não tenha estudado, pois o pai era alcoólico e eles
viveram com uma tia, declinou um poema lindo que há vinte anos escreveu
dedicado à mãe. Começou a trabalhar com 14 anos como aprendiz de mecânico e aos
24 tinha uma oficina com onze pessoas a trabalharem para ele. Trabalhou muito
toda a vida, como ele refere e se lê na sua cara. Mais tarde cansou-se da
mecânica e dedicou-se à agricultura e ao gado, adquirindo aos poucos uma enorme
propriedade onde tem as suas 700 vacas.
Buenos Aires e arredores tem mais de 12 milhões de habitantes, quase metade
da população argentina. É uma cidade fantástica, moderna e com imensa vida mas
a sua população é quase toda composta por descendentes de europeus, ao
contrário do que acontece nas outras capitais da América Latina onde vemos
muitos mestiços. Aqui, não só os espanhóis dizimaram a população indígena como
os ingleses chegaram a invadir a zona, mantendo ainda hoje as famosas ilhas
Malvinas em seu poder enquanto, mais tarde, também Napoleão conquistou esta
parte da Argentina. O resultado é um povo pouco humilde de personalidade e que
têm mais parecenças, físicas e de mentalidade, com ingleses ou franceses que
com latinos, até pela quantidade de loiras, mesmo sendo muitas falsas, que
vemos nas ruas. A maioria, tal como os franceses, parecem ser pessoas mal
resolvidas com a vida, antipáticas no primeiro contacto, a acharem-se
superiores aos povos vizinhos e fascinados com os europeus que consideram ser o
grupo de que fazem parte, mesmo se odeiam os ingleses por causa do conflito com
as ilhas.
Um bom exemplo da sua atitude arrogante foi quando cheguei já tarde para
embarcar com a moto no ferry que me levou ao Uruguai.
A mulher que estava à porta quando eu cheguei, sem dizer nada, abanou a
cabeça como quem diz: o que é que quer?
Eu, para a provocar, não respondi e abanei também a cabeça. Voltámos a
trocar abanões de cabeça até que ela me disse:
- O que é?
- Vou embarcar
- A esta hora?
- Sim, a esta hora.
- Não sei se pode
- Posso (estava tranquilo porque já me tinham vendido o bilhete)
- Não sabe que tem que chegar uma hora antes?
- Sim, mas atrasei-me.
- O seu passaporte e os documentos da moto.
E lá ficou a olhar para os dois a ver se encontrava alguma boa razão para me impedir de embarcar. Inaturável.
Fez-me lembrar uma cena que tive há uns anos com uma guarda fronteiriça Suiça
ou as que tenho mais vezes com as miúdas que trabalham nas áreas de serviço das
auto estradas francesas, em que já lhes tenho perguntado, qual psicólogo, se
têm algum problema grave na vida que queiram contar.
É abismal a diferença entre os povos simples, simpáticos e de bem com a
vida que encontramos no resto da América do Sul e estes da região de Buenos
Aires e até um pouco de Santiago do Chile.
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